domingo, 19 de fevereiro de 2017

Querido pai



Os anos se vão e as lembranças começam a perder suas cores. Cada dia se tornam mais sépia e tenho medo que eventualmente não seja mais capaz de lembrar-te. Há muitos anos já não consigo sentir o cheiro do teu pós-barba em minha memória. Fecho meus olhos e as imagens demoram pra se formar. E ainda assim, teu rosto vai borrando mais e mais através dos dias, dos meses... Há quase duas décadas espero por teu abraço, o abraço de despedida que nunca aconteceu. Aguardo o telefone tocar, a tua voz do outro lado dizendo “oi querida”. Que saudade de te ouvir falar...
Tanto amor, interrompido as pressas, ou não? Receio que não tenhas partido tão de repente. Começastes a me deixar muito tempo antes, aos poucos, até que um dia alguém maior e mais forte tomou meu lugar em teu coração.  E eu, na minha inocência, não fui capaz de perceber, que meu amado pai já não estava presente, pois sua mente havia deixado seu corpo pra trás.
Queria ter mais uma chance. Pra te salvar de ti mesmo, salvar a mim, salvar a nós dois de tal destino, tão cruel.
Lembro-me de tua barba espessa, machucando meu rosto quando me beijavas. Lembro-me de teus óculos escuros, mas não de teus olhos, que diziam tanto, sem dizer nada. Olhos autistas escondidos do mundo, um mundo também áspero que te feria por todos os lados. Eu sei pai, como era difícil. Pra mim também é. Mas queria, como eu queria, que pudéssemos ter enfrentado juntos os desafios que fizeram de nós dois tão frágeis e desprotegidos, escondidos por nossos escudos. Única forma de suportar.
Não fostes capaz de vencer o medo, a dor e a intensidade da vida. Mas deixastes marcas tão profundas em mim, um pedacinho de tua alma que levo comigo em minha jornada. Sigo por esse caminho tortuoso, atravessando as tempestades, levando você dentro de mim.
E eu prometo pai, atravessar este túnel trevoso e vencer a batalha por nós dois.
E quando finalmente estivermos juntos de novo, nada mais será capaz de nos separar, pois estarei inteira, completa, presente.

M.

3 comentários:

  1. O que eu posso dizer? Fico sem palavras próprias diante das suas...simplesmente emudeço e choro...

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  2. O choro me toma com esse lindo texto. lembro-me dá dificuldade que eu tenho de me relacionar com meu pai. Tantos medos, uma distância enorme que só aumenta com os anos. Um amor silencioso, emudecido, os anos me deixou engasgado. Sei que o tempo voa, os segundos nos toca a face dizendo que falta pouco tempo, no minuto seguinte podemos não ter mais essa chance e, mesmo assim, o outro que vive em mim me toma por completo.

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